A representatividade da mulher na arte

A presença de artistas mulheres na Coleção de Arte da Cidade do CCSP – acervo que reúne cerca de 2.900 obras – é desigual em comparação aos artistas homens. Estima-se, aproximadamente, segundo Vera Maria Porto de Toledo Piza (pesquisadora da Coleção), que a quantidade de artistas mulheres corresponde a 424 nomes, enquanto os artistas homens somam 1.038. Essa disparidade de números é uma realidade frequente nos acervos de arte de grandes instituições do mundo: no Metropolitan Museum, em Nova Iorque, 5% das artistas na seção de arte moderna são mulheres. Esses dados revelam que a busca pela igualdade de gênero no universo das artes é ainda uma questão que está longe da superação.

O coletivo artístico feminista Guerrilla Girls, dos EUA, luta por uma maior representatividade nas artes visuais. No segundo semestre de 2017, ocupou o MASP (Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand) com a exposição Gráfica, 1985-2017, apresentando a trajetória do grupo, que questiona a situação da artista mulher em um mundo e uma história da arte dominados pelos homens. As artistas do coletivo também articulam questões como o eurocentrismo, o privilégio branco e a heteronormatividade.

“As mulheres precisam estar nuas para entrarem no Metropolitan Museum? 5% das artistas na seção de arte moderna são mulheres, mas 85% da nudez nas obras é feminina”. Essa frase compõe um dos muitos cartazes das Guerrilla Girls, que trazem a público o número desigual de artistas mulheres, em relação aos homens, na formação da coleção de um dos museus mais visitados do planeta – ao passo que, entre as obras que figuram nus, a grande parcela corresponde a corpos femininos. Na Coleção de Arte da Cidade do CCSP, das 117 obras que representam corpos nus, 79 deles são femininos. No MASP, 6% dos artistas do acervo em exposição são mulheres, mas 60% dos nus são femininos.

A mulher na história da arte

Se a representação da figura feminina, em comparação à masculina, ao longo dos séculos, predomina na pintura realizada por artistas homens, estes sempre ocuparam um lugar de centralidade e visibilidade na produção artística. Tal fenômeno se evidencia na literatura da história da arte e nas coleções de museus e galerias – consequência da perspectiva patriarcal que formou os cânones artísticos ocidentais.

A historiadora de arte Linda Nochlin (1931-2017), através do artigo Why have there been no great women artists?, de 1971, publicado na revista ARTNews, reivindica um novo paradigma para a história da arte expondo as barreiras impostas pela sociedade que impediram as mulheres não apenas de seguir pelo caminho artístico, mas também de serem reconhecidas nesse domínio. Segundo Nochlin [1], há o predomínio do ponto de vista masculino ocidental, inconscientemente aceito como o ponto de vista do historiador da arte. Na contramão, artistas mulheres, cujas produções são reconhecidas na arte contemporânea brasileira, têm firmado, cada vez mais, representatividade no circuito de arte, produzindo, por exemplo, a partir de questões sobre a mulher – assumidamente ou não –, entre elas Anna Maria Maiolino, Lygia Pape e Sonia Andrade.

Ana Mae Barbosa, pioneira em arte-educação no Brasil, também corrobora, em uma de suas pesquisas, a desproporção entre o número de homens e mulheres nas coleções de arte, sejam públicas ou particulares. Mas, por outro lado, destaca a construção da imagem de grandes artistas mulheres na história da arte brasileira, mencionando Tarsila do Amaral, ícone e referência do Modernismo, citada de maneira expressiva e tanto quanto os homens que integraram o movimento que marcou a renovação das artes do País.

Caminhos da representatividade

Em 2018, esteve em cartaz no Centro Cultural São Paulo a exposição Arte tem gênero? Mulheres na Coleção de Arte da Cidade, que apresentou um conjunto de trabalhos – sem proposição temática – realizados por mulheres presentes no acervo de arte do CCSP. Organizada em função de gênero, a mostra levanta a questão sobre a presença desigual de nomes femininos, em relação aos masculinos, no acervo, trazendo obras de Ana Maria Tavares, Carmela Gross, Célia Euvaldo, Dora Longo Bahia, Jac Leirner, Lydia Okumura, Lygia Pape, Regina Silveira, Regina Vater, Rosana Paulino, entre outras. Em meio aos debates sobre a representatividade feminina na arte, é necessário trazer exposições que adensem a busca pela igualdade de gênero na formação de acervos e que possibilitem ao público ter contato com a arte produzida a partir do ponto de vista das mulheres, independentemente do período ou estilo.

Em novembro de 1954, o MAM (Museu de Arte Moderna) realizou Exposição de desenhos, mostra que reuniu cinco artistas mulheres: Gerda Brentani, Rosa Frisoni, Yolanda Mohalyi, Elisabeth Nobiling e Mella Salm. Tendo o desenho – que ganhou devida valorização a partir dessa época – como ponto de partida, as artistas se debruçavam sobre esse meio artístico para fazer uma narração muito pessoal: registro gráfico e íntimo de personalidades e sensibilidades diversas. A exposição não é apresentada de maneira significativa no ensino das artes do País – aliás, não há informações na internet sobre o evento. Outras mostras, do mesmo período, com predomínio de artistas homens, são abordadas mais amplamente – fato que nos direciona, mais uma vez, para a perspectiva patriarcal que guia a história da arte, embora atualmente haja uma força maior de resistência e mudança nesse cenário.

Na Coleção de Arte da Cidade do CCSP, as obras mais antigas de autoria feminina são Part of the town of Rio de Janeiro view from the edge of the mud fort of Bairra Vermelha e Rio de Janeiro, ambas de 1825, da pintora, desenhista, escritora e historiadora inglesa Maria Graham. Os trabalhos são frutos de suas viagens, na primeira metade do século 19, para o Brasil, fonte para a representação de vistas surpreendentes e pitorescas dos lugares percorridos pela artista – que explora as relações entre a natureza e a arquitetura pela ótica feminina. Graham representa uma gama de trabalhos da história da arte que, além de serem importantes registros documentais de missões científicas ou diplomáticas, revelam características artísticas de seus autores. A autonomia feminina pode ser observada em Graham como consequência de seu interesse pela literatura desde a infância, lhe proporcionando certa independência e a chance de experimentar a liberdade fora do ambiente doméstico burguês, por meio de viagens marítimas que realizou em parte de sua vida.

Por volta das décadas de 1970 e 1980, artistas mulheres – influenciadas pelos movimentos feministas – começaram a colocar em prática a importância de expressar em sua arte aspectos da personalidade individual e de gênero. O processo da liberdade feminina na arte, que exige a inserção da mulher dentro de um sistema artístico predominantemente masculino, surge da necessidade de emancipar o corpo da mulher da condição de objeto da representação pela ótica masculina – prática recorrente da história da arte. Essa questão tem suas origens em momentos anteriores: no século 19, diferentes tipos de discriminações relativos às mulheres artistas começaram a ocupar a esfera de um debate público. A trajetória de Maria Graham, vista da contemporaneidade, pode ser compreendida como um ponto de quebra da predominância artística masculina na arte. Graham representa a mulher que rompe os paradigmas de gênero impostos na sua época e se revela uma artista-viajante – figura que é tão recorrente na história da arte, cujo ensino, porém, nos direciona sempre para os homens que exerceram esse ofício.

Retornando a Why have there been no great women artists?, de Linda Nochlin, a própria responde a pergunta do título durante o artigo: “não existiram grandes mulheres artistas porque não existiram as condições sociais, políticas, culturais e intelectuais para que existissem. O que era surpreendente era – apesar de tudo – que existissem tantas e tão boas.” Se pensarmos nos movimentos artísticos que se sucederam ao longo dos tempos, nosso imaginário é sempre direcionado para figuras masculinas. Portanto, há de se pensar que as artistas mulheres que se consolidaram na história e hoje ocupam lugar de destaque nos debates da arte tiveram um contexto pessoal favorável para exercer o fazer artístico.

A Coleção de Arte da Cidade – acervo que possui algumas obras pontuais do período colonial e do século 19, além de importantes peças modernistas e contemporâneas provenientes dos Prêmios Aquisitivos do Salão Paulista de Belas Artes e do Programa de Exposições do CCSP – apresenta certo número de artistas mulheres, mas é notável a diferença em relação à quantidade de artistas homens. Por isso, é um desafio para as grandes instituições – detentoras de acervos que se atualizam de tempos em tempos – trazer questões atuais na formação de suas coleções, como a representatividade feminina, que surge da necessidade de reverter o domínio do homem na história da arte.

Texto: Danilo Satou
Pesquisa: Danilo Satou e Vera Maria Porto de Toledo Piza (pesquisadora da Coleção de Arte da Cidade)
Colaboração: Camila Bôrtolo (coordenadora da Coleção de Arte da Cidade)
Ilustração da capa: Beatriz Simões (a partir da obra da artista Lygia Pape)

Notas:
[1] NOCHLIN, Linda. Por que não houve grandes mulheres artistas?. São Paulo: Edições Aurora, 2016.

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