A presença da cultura popular no espaço urbano

“Nós não tocamos um baião.
Nós tocamos um baião que nos toca”

(Alex Huszar, Semiorquestra)

 

A ideia de busca da identidade nacional no Brasil esteve em pauta desde o começo do século 20, principalmente com as pesquisas etnográficas de Mário de Andrade e com a ascensão das Ciências Sociais no País na década de 1930. A partir daí, muitos estudos se voltaram a identificar a característica brasileira. Hoje já sabemos que a síntese dessa busca é que não há síntese. Não temos uma unidade que nos faz brasileiros.Uma das razões desse fenômeno é que temos uma ampla bagagem de expressões culturais em todo o território nacional. As culturas populares têm raízes profundas nas representações, nas músicas e nas danças, resultantes de uma carga histórica ligada a rituais e tradições.

Muitos autores tentaram definir o que é cultura popular, mas talvez possamos concordar que o melhor é definir o que ela não é. Ela não é homogênea e nem delimitada.

A cultura erudita é colocada em contraponto à popular e é comumente relacionada à “clássica”, quando a arte popular vai para o campo do estudo intelectual e inclusive acadêmico – como as composições repletas de choros e sambas de Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959). Mas essas classificações sempre estiveram em diálogo, como a literatura de cordel que carrega influências tanto da cultura popular quanto da erudita.

Diante da onda modernizadora que excluía as culturas tradicionais, iniciou-se na Inglaterra, em 1846, um movimento de valorização dos costumes populares no espaço urbano. A palavra folclore, embora semanticamente desgastada nos dias de hoje, originou-se desse momento. Folk-lore – sabedoria do povo – expressa as tradições, como lendas, brincadeiras, músicas, literatura, festas religiosas e artes populares.

O Brasil, a partir dos anos 1980, passou a ter um movimento semelhante ao entender a cultura popular como local de resistência, principalmente pela constituição de 1988, em que a volta da democracia traria à tona a reafirmação da diversidade cultural.

A cidade de São Paulo é reflexo dessa reafirmação e vem se mostrando cada vez mais plural culturalmente. Isso se deve tanto às migrações quanto ao interesse de artistas paulistanos em valorizar as expressões populares. Na capital paulista encontram-se instituições, ONGs, escolas, e a própria rua, que abrigam manifestações culturais diversas.

Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor aposentado da UNESP, classificou os diferentes grupos que trabalham com a cultura popular brasileira. Falaremos de dois tipos, que serão comparados neste texto: os Grupos contemporâneos de vitalização das expressões populares e os Compositores de música popular, de gêneros regionais ou “de música raiz”. Os primeiros entendem-se por grupos que mergulham num gênero específico da cultura popular, vitalizando-a em espaços que não são de sua origem. Exemplo disso é o grupo a Barca, que iniciou seus trabalhos em 1998, inspirando-se nas viagens etnográficas de Mário de Andrade e realizando uma rica expedição pelos estados do Pará, Maranhão, Ceará, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Bahia, Minas Gerais e São Paulo. O grupo concretizou seu trabalho musical em torno dessa coleta e do diálogo com as comunidades. Um resultado foi o álbum Baião de Princesas, que, junto com a Casa Fanti Ashanti, retrata a Festa Baião de Princesas em São Luís do Maranhão.

Outro exemplo é o Instituto Brincante, idealizado pelo multiartista pernambucano Antonio Nóbrega (1952), onde se trabalha a cultura popular sob um olhar contemporâneo que casa com o espaço urbano. Respeitando as tradições, o aluno é convidado a vivenciar por meio de música, dança e poesia, expressões como jongo, caboclinho, coco, maracatu, etc.

Já os grupos classificados como compositores de música de raiz seriam músicos que fazem leituras das músicas tradicionais e as transformam, fazendo certa fusão musical entre o tradicional e o pop, como os trabalhos dos cantores da MPB e dos compositores Hermeto Pascoal e Itamar Assumpção.

A “massa sem cara” – nas palavras de Itamar, então recém-chegado a São Paulo – vem se tornando palco importante desse grupo em específico, pelo conglomerado cultural, mas é importante destacar que no espaço urbano a arte se transforma. Ela conversa com a cidade e vice-versa.

A banda Semiorquestra, que lançou seu primeiro álbum Jogos e Quitutes no CCSP, é um exemplo concreto de diálogo entre a cultura popular e a erudita. Ao contrário da Barca, o grupo nascido de universitários paulistanos mergulha nas variedades de gênero da cultura popular e coloca-as em diálogo. “São Paulo tem vários gêneros musicais, coisas acontecendo simultaneamente, roda de choro, shows… A gente acaba vivendo isso tudo! Pela quantidade de influências, fica mais difícil abordarmos uma coisa só. Não é tentando transformar o frevo no samba, é preservando um pouco do que ele é, mas mostrando que depois pode vir um samba e que talvez essas músicas se pareçam um pouco, sendo possível montar arranjos nas quais elas se conversem”, comentam, em conversa com o CCSP, os integrantes João Batista, João Rodrigues e Alex Huszar da Semiorquestra.

Esse movimento de apropriação de múltiplos gêneros se insere na realidade atual do paulistano que vive sua cidade e a absorve de maneira orgânica por diversos lugares onde passa.

É importante destacar os lugares de onde os porta-vozes da arte falam. O papel desses dois grupos classificados pelo professor Ikeda não fazem a manutenção das tradições populares em seus lugares de origem. Não cabe a eles essa função. Eles captam, seja intencionalmente, a partir de pesquisas específicas, seja naturalmente, pela experiência cultural, o que nessas culturas já está enraizado. Os responsáveis são os próprios frequentadores de cada manifestação tradicional e os detentores dos saberes, que são geralmente os mestres.

Há um embate entre as culturas erudita e popular que podemos relacionar com um panorama no qual a erudita é o eixo horizontal e a popular é o vertical. No primeiro, quanto mais conhecimento sobre o mundo alguém tiver, maior será o horizonte a ser enxergado. O segundo refere-se a uma tradição única, porém extremamente aprofundada em si.

São dois conhecimentos diferentes. Mas o que acontece é que o conhecimento popular é comumente colocado num lugar inferiorizado em relação ao erudito. Isso porque aprendemos desde sempre a honrar o que vem da elite, e desvalorizar a construção da nossa tradição. Querendo ou não, é um conflito de classe.

Dessa forma, torna-se importante a incorporação da cultura popular desses trabalhos artísticos em São Paulo – polo industrial e econômico do País. A arte importada e digerida está sempre chegando a partir do mercado, tornando ainda mais emergente a importância do espaço e a visibilidade desses grupos, como a Semiorquestra, a Barca, os trabalhos de Antonio Nóbrega e muitos outros que se inserem nesse contexto.

Proteger a cultura é proteger os detentores dos saberes. O conhecimento sobre ela torna-se extremamente relevante, pois sempre carrega questões religiosas, vivenciais e históricas do nosso País.

 

+Para saber mais:

 

Alberto T. IKEDA, “Culturas populares no presente: fomento, salvaguarda e devoração”. Estudos avançados, vol. 27, no 79. São Paulo, 2013. pp. 173-190.
José Ramos TINHORÃO, Música e cultura popular vários escritos sobre um tema em comum. São Paulo, 2017.
Renato ORTIZ, “Estado, cultura popular e identidade nacional”. Cultura Brasileira e identidade nacional, São Paulo, 1985.
SEMIORQUESTRA, Jogos e Quitutes. Tratore, 2019
Instituto Brincante
A Barca

 

Texto: Lara Tannus
Revisão: Paulo Vinício de Brito
Ilustração: Beatriz Simões
Colaboração: Semiorquestra

 

*Publicado em: 17 de maio de 2019

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