Conceição Evaristo lota o CCSP e atrai multidão em tarde de autógrafos
Por Alexandre César | Redação CCSP | Fotos: Nina Gocke
22/08/2025
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Protagonismo dos povos originários, dos pretos, dos nordestinos, dos desvalidos nas comunidades carentes do Brasil, esse é um dos motes de histórias e estórias emocionantes que a professora e escritora Conceição Evaristo compartilhou com o público nesta quinta-feira, 21, no Centro Cultural São Paulo (CCSP), no Festival Internacional Literário de São Paulo, o FLI Sampa.
A Sala Jardel Filho ficou completamente lotada, com o público formado por docentes das redes públicas e particulares de todo o Estado, além de entusiastas da obra da escritora que, durante o evento, fez questão de ser chamada de professora, e não, de escritora.
Eu faço questão de sempre ser chamada de professora, pois esta foi a profissão que almejei desde a infância, eu nasci para ser professora. Ser escritora é, talvez, uma consequência desse desejo que eu tinha de ensinar a ler e a escrever. Na minha carreira, eu sou professora aposentada do Município do Rio de Janeiro, e eu tenho uma amiga que trabalha comigo na Casa de Escrevivência (Saúde, Rio de Janeiro), a Ângela, e ela diz: “Nós somos professoras PP”, que antigamente o termo era ‘Professora Primária’, mesmo depois que eu fiz a graduação e tudo, mas a minha matrícula e a minha aposentadoria no Rio de Janeiro é como Professora Primária. E eu carrego esse título com muito orgulho – salientou Conceição Evaristo.

Segundo a própria autora, o seu trabalho visa contar a luta, a resistência e a perseverança dos povos menos assistidos e postos nos rodapés da História canônica da Nação Brasileira, mas sem, é claro, colocá-los no lugar-comum como costumamos vê-los na Cultura Pop. Na obra de Conceição Evaristo, histórias reais servem como inspiração para seus contos, romances, poesia e relatos. Em seu último livro publicado, Macabea: Flor de Mulungu (EVARISTO, Conceição; NABUCO, Luciana; MATSUSHITA, Raquel. 2023. Oficina Raquel), Evaristo ilustra o seu pensamento.
A história de um País, a história do Brasil, não tem como você negar a presença negra, não tem como você negar a presença indígena. Mesmo que isso não seja tão valorizado pela história oficial, mas as nossas ações, o nosso jeito, a nossa cultura, o nosso corpo marca uma identidade brasileira. Quem leu a Hora da Estrela (1977), de Clarice Lispector, sabe que Macabéa é uma mulher nordestina. Quem leu A Hora da Estrela, se sentiu contaminado por Macabéa, se sentiu contaminado pelo texto de Clarice, se sentiu, é, contaminado pelo narrador, e pela própria Macabéa. E aí, a contaminação é tanta que você tem vontade de escrever alguma coisa a partir daí. Então, apresentar determinado texto para os nossos alunos é provocá-los a pensar um outro texto, a construir uma outra história. Por isso, ao contarmos a resistência do povo nordestino, do povo negro, dos povos originários, me perguntaram uma vez “Mas você só escreve sobre os pretos”? E eu respondi “Enquanto ei estiver aqui, falarei dos pretos” – arrancando aplausos entusiastas da plateia.
Ainda sobre este assunto, a mediadora Eva Santos levantou a questão sobre a pecha que muitas pessoas impõem a escritores que se baseiam em assuntos das minorias brasileiras, como se o o escritor não soubesse escrever mais nada, e que o escritor pode, sim, abordar todos os assuntos relativos ao seu universo.
Os textos sacramentados falam as pessoas negras, ou folclorizadas, ou pessoas que são extremamente más, ou que são extremamente boas, o que os nossos textos trazem, são as nossas contradições como sujeito humano. Eu posso ter contradições como uma mulher branca tem. Eu posso viver intensamente o amor como uma mulher branca vive. Posso viver intensamente a minha solidão como uma pessoa branca vive. Então, quando os nossos textos trazem as nossas realidades, a gente não está falando pouca coisa, a gente está falando muita coisa, muita coisa. E quando falam “Ah, mas o texto de vocês é militante”, a militância também, o convencimento, ela é você pode exercer através da omissão. Eu acho que numa realidade como é o Brasil, você não pode escrever só um livro para provocar gargalhadas. Você não pode escrever só um livro falando que o Brasil é a pátria amada de todos os filhos, porque a gente sabe que uns são mais filhos que os outros, não é? O meu texto fala muito sobre negro, mas ele fala sobre negro em profundidade. Nós fazemos de uma literatura a partir da nossa realidade. A literatura brasileira é muito diversa.

Ao fechar esse pensamento, a professora compartilhou a seguinte lembrança.
Existe uma cena que eu não consegui escrever até hoje, eu gosto muito de contar essa cena, porque eu acho que ao contá-la, as pessoas entendem com que espírito eu vou para compor um livro, para compor uma personagem. Nos anos 2000 eu dava aula no Morro de São Carlos, lá no Rio de Janeiro, que é um morro bastante conhecido, é perto do Sambódromo. Ali, nasceu uma das primeiras Escolas de Samba, a Unidos de São Carlos, e mudou o nome para ficar mais atrativo, a Estácio de Sá. E eu saindo da escola, eu vi um menino, um rapaz bem jovem, no máximo uns 20 anos, em pé, ereto, e com uma Escopeta. Assim na frente. Um soldado do tráfico, e perfilado, com toda dignidade de um soldado, como se talvez fosse para uma guerra defender a sua Pátria. Estava lá aquele jovem, aí, eu passei e vi: na direção dele vinha uma mulher negra, também bem jovem, como uma criança de uns três ou quatro anos e a mulher vem na direção desse rapaz. Quando ele a viu, e o seu filho, ele abaixa, eu me emociono até hoje com essa cena, ele abaixa e joga a Escopeta para trás e abraça o filho. E a menina toda satisfeita ali. Eu não consegui escrever essa cena até hoje, porque o que eu vi ali não foi o menino soldado do tráfico. Eu vi um pai muito jovem com uma mulher muito jovem abraçando, agachando para abraçar o filho. É uma cena que de uma hora para outra poderia se transformar em sangue, caso a Polícia tivesse subido o morro ou se aparecesse uma outra pessoa tão jovem contra como ele e ali ter uma guerra de facção. Mas o que eu quero é que essa literatura aprenda que esse instante de afeto, que aquela imagem me provocou diz “Agora, têm livros que vão falar de guerra, de tráfico, de não sei o quê”, que eu não preciso de criar essas personagens, elas já estão lá. E isso não é apologias do bandido. A cena que eu quero reter, que eu quero escrever, claro, que eu tenho que dizer que o jovem abaixou e jogou a arma para trás e abraçou seu filho, mas é essa cena que eu quero que fique. É a cena do abraço, é a cena da mulher que é uma jovem mulher de um bandido, ou sei lá, ou de um traficante, ou sei lá de quê, mas não é isso, não é? Era uma mulher feliz no encontro, ali, com o sujeito amado e a criança. E eu trago o termo mineiro que eu gosto muito também, é preciso você ter uma perspicácia é muito grande para poder ir além da cena. E o texto tem que ir além. Quando você lida com a realidade, a realidade está muito mais além, você não consegue mesmo captar a realidade. Então, esse exercício de procurar nos colocar, porque aquele menino poderia ser meu irmão, poderia ser meu sobrinho, poderia ser meu filho. Entende? Então, eu acho que é esse olhar e agora eu vou usar o termo. É esse olhar ameigado para a brutalidade da vida é que faz com que esse texto possa comover tanto. Muito obrigada – encerrou a professora.
Ao final da palestra, Conceição Evaristo, no alto de seus 78 anos, atendeu mais de 200 pessoas na sessão de autógrafos na área das Bibliotecas do CCSP, sem deixar de um sequer ficar sem a lembrança e uma foto com a eterna educadora.

O FLI Sampa, realizado pela Secretaria Municipal de Educação (SME), em parceria com as Secretarias de Relações Internacionais (SMRI) e da Cultura (SMC), é uma grande celebração da literatura e da cultura, que reúne escritores, artistas, estudantes, educadores e toda a comunidade para promover o encantamento pela leitura e a formação de novos leitores.
Veja a programação completa do FLI Sampa no site da SME.