O período de redemocratização no País trouxe perspectivas para novas manifestações e aspirações na sociedade brasileira. A arte independente (ou marginal) veio à tona, em paralelo à ascensão do grafite, do punk, de movimentos operários e de uma nova imprensa. Tudo isso proveniente de uma grande efervescência cultural em contraste com a contraditória abertura “lenta, gradual e segura”.
Se no regime militar a produção cultural se construía em confronto com a constante repressão e a censura, os anos 1980 foram berço de novos jeitos de se pensar a arte, com influências de vertentes da arte contemporânea dos países estrangeiros, principalmente da norte-americana, como a Arte Conceitual, a Pop Art e Street Art.
A nova mentalidade provinha mais do conceito da arte do que de sua própria imagem. Assim, artistas desses movimentos priorizaram a política e a subjetividade, abrindo espaço para as diversidades estilística, técnica e comunicativa. Os artivistas, como passaram a ser chamados, ocupavam as ruas com arte politizada, trazendo questionamentos e recriando padrões.
Em 27 de abril de 1979, São Paulo ganhou sua primeira intervenção urbana com o trabalho do grupo 3NÓS3. À meia-noite, os artistas saíram às ruas, partindo do Parque da Independência, com um único intuito: ensacar a cabeça das estátuas espalhadas na cidade. A ação foi finalizada ao amanhecer, na Praça Marechal Deodoro. Por meio de ligações anônimas que exigiam esclarecimentos sobre o ocorrido – que mais tarde descobriríamos que foram dos próprios artistas – os jornais logo souberam do acontecimento e, até o final do dia, a imprensa foi tomada pelo Ensacamento.
“A cada dia esta cidade amanhece diferente do dia anterior. Muros pichados com frases poéticas e algumas sem muita definição […] Ontem foi a vez dos monumentos da cidade: as estátuas amanheceram com venda nos olhos, outras com capacetes. Há na cidade uma nova moda. Algum apolítico, preocupado apenas em mudar a paisagem das ruas? Uma resposta difícil […] O que está acontecendo nesta cidade?”
Diário da Noite 28/4/1979
Essa intervenção deu início ao projeto do grupo, formado pelos artistas universitários Mario Ramiro, Hudinilson Jr. e Rafael França, que passaram a pensar a arte como ferramenta ressignificante, que poderia recriar o visual da cidade.
Indo na contramão do circuito artístico da época, o 3NÓS3 fez do espaço urbano sua principal tela e teve como objetivo questionar seus padrões estéticos e conceituais, provocando o público a se deslocar de seu cotidiano.
Após o Ensacamento, realizaram algumas outras intervenções, como X Galeria e Interdição. A primeira consistiu em lacrar as galerias com um “X” de fita crepe com um papel mimeografado escrito O que está dentro fica, o que está fora se expande, que trazia crítica à arte pertencente ao circuito, enclausurada em galerias. A segunda foi o breve fechamento da faixa de pedestre na frente do MASP – instituição paulistana da alta cultura. Com papel celofane, os artistas atravessaram a Av. Paulista, impedindo a passagem de carros.
É importante destacar que a imprensa teve um papel fundamental no trabalho do grupo, tanto pela extensão informativa das intervenções quanto por serem produtoras, inconscientemente, de portfólio dos artistas – até porque a produção audiovisual era muito cara na época. Além disso, essa conexão abriu portas para um texto-intervenção com palavras aleatórias do 3NÓS3, no jornal Diário de São Paulo, tirando o caráter informativo do texto e intervindo numa antinotícia.
O CCSP é responsável por guardar grande parte de catálogos, entrevistas e documentos do grupo no Arquivo Multimeios, além de ter realizado, em 2012, a exposição Obra e Documento – Arte/Ação e 3NÓS3, sob curadoria de Adelaide Pontes.
Além do 3NÓS3, outros grupos ajudaram a consolidar a arte de intervenção naquele momento, como o Viajou Sem Passaporte, que era ainda mais inserido na crítica social; além do surgimento dos grafiteiros de São Paulo, como Tadeu Jungle e Walter Silveira.
Ocupar as ruas e o espaço midiático não só aproximava a população da arte como causava impactos por se tratar de ressignificações do cotidiano e de novas aspirações e questionamentos. E foi nesse caminho que a arte urbana se desenvolveu, com a ascensão do grafite, do “pixo” e também das intervenções, que logo virariam performances teatrais, corporais, etc.
No entanto, no período de redemocratização, essas intervenções chocavam de alguma forma as pessoas e, dessa maneira, o sistema alienante em que viviam era perfurado. Talvez esse fenômeno fosse efetivo porque ações como Ensacamento não eram vistas como arte.
A partir do momento que eram categorizadas como tal, passavam a compor o sistema, rompendo com seus objetivos. “A própria etiqueta de obra de arte talvez tenha colaborado para esse esgotamento, uma vez que muitas das intervenções não conseguem, como se pensava no passado recente, ‘estranhar’ ou ‘deslocar por um instante’ o sujeito casual que se deparava com elas”, diz Mário Ramiro em conversa com o artista Rafael Leona. De fato, a não clandestinidade da arte urbana hoje fez o grafite virar atração turística, como, por exemplo, no Beco do Batman, e ser comercializado no mercado de arte.
Podemos pensar também algumas outras razões para certo conformismo social diante das intervenções artísticas. Se fizermos um paralelo dos anos 1980 com os dias atuais, notamos que muita coisa mudou no modo como os conteúdos e as informações chegam até nós e como os observamos. Estamos na era digital globalizada, em que as redes sociais têm muita influência sobre nossas ações. Temos acesso a tanto conteúdo, que acabamos muitas vezes absorvendo todos de uma vez, de uma forma superficial e passageira. Os vários estímulos digitais dificultam um foco único de atenção e talvez seja isso mesmo que a era digital espere do comportamento humano.
Quando um indivíduo acessa a página inicial do Facebook, por exemplo, ele tem uma série de informações de uma vez, começando por um decreto do governo, seguido de uma selfie de um amigo, de um clipe de um grupo musical que lhe interessa, de uma tragédia ambiental, do “merchan” de uma marca, da fala de um deputado, e assim por diante.
A indignação que ele poderia ter sentido com a primeira notícia de um decreto do governo, e que poderia desenvolver uma reflexão mais profunda sobre o assunto, foi sufocada pelo amontoado de informação que recebeu a seguir. Nesse sentido, o indivíduo moderno parece ser desviado o tempo todo por estímulos de vários gêneros. Parece que o que chocava antes, tanto a arte como a informação, virou parte do sistema. Indignar-se virou parte do sistema. Assim, a arte politizada encontra um desafio muito grande hoje. De que maneira ela poderia se reinventar?
+para saber mais:
RAMIRO, Mario. 3NÓS3 Intervenções Urbanas. São Paulo: Editora Ubu. 2017.
Arquivo Multimeios CCSP – Acervo 3NÓS3
Black Mirror, 15 milhões de méritos. Temporada 2, episódio 1
Texto: Lara Tannus
Revisão: Paulo Vinício de Brito
Ilustração: Beatriz Simões