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Entrevistas
Programa de Exposições 2018: Anna Costa e Silva
Artista selecionada para o Programa de Exposições 2018, a carioca Anna Costa e Silva apresenta na I Mostra a instalação sonora Éter, uma sala escura que convida o público a deitar e ouvir conversas gravadas de pessoas que estão num estado entre a consciência e o sono. “Passei duas semanas dormindo cada noite na casa de uma pessoa diferente, com pouquíssimas noites de intervalo. Era cada dia sendo recebida por um universo completamente particular, sozinha, acompanhada apenas do meu gravador”, conta Anna, cujo interesse principal consiste naquilo que ela chama de “estados” de encontro.
Seu trabalho acontece no trânsito entre artes visuais, artes cênicas e cinema. Esse diálogo entre diferentes linguagens é o que mais caracteriza a sua produção? De que modo ele se materializa em trabalhos como a instalação sonora Éter?
Acho que o que mais caracteriza a minha produção não é exatamente o diálogo entre as diferentes linguagens, mas um interesse nas dinâmicas de relação possíveis, um trabalho que acontece a partir de encontros e da exploração das fragilidades e também a partir de uma busca pelo que chamo de “estados” de encontro, que são efêmeros. São trabalhos que partem de situações construídas para que coisas aconteçam, que buscam uma instabilidade e descontrole a partir de um acordo entre os participantes. Acredito que o diálogo entre as diferentes linguagens seja uma consequência dessa exploração, que não poderia se restringir a uma só linguagem, afinal, lidar com uma busca que vai além da materialidade requer estratégias e procedimentos diferentes, de acordo com cada situação proposta. Eu gosto desse trânsito entre o material e o imaterial. Acredito que a materialização de algo pode ser uma dobra pra uma situação efêmera, como é o caso do Éter, que, por um lado, é um trabalho de escala um a um, totalmente imaterial, mas se desdobra também numa instalação sonora que compila as conversas e cria uma outra coisa a partir do quarto escuro, da polifonia da edição das vozes, dos seis canais de som, da possibilidade de o visitante dormir dentro de uma instalação, etc. Outros trabalhos se materializam como instalações de vídeo, filmes, ou situações instalativas que misturam fotografias, vídeos, cadernos, entre outros.
Conte um pouco sobre o processo de Éter. Como surge a ideia ou a necessidade de pensar e “observar” os vários ângulos de um quarto escuro?
Éter surgiu numa residência em São Paulo no Phosphorus. Era a minha primeira vez passando um tempo na cidade e acredito que a escala de SP realmente me tocou – ver todos aqueles prédios, observar as luzinhas nas janelas se acendendo quando caía a noite, pensar nas tantas caixinhas em que as pessoas vivem e na quantidade de histórias, de existências, de sonhos, amores, dúvidas, angústias que existiam em cada lugar. E era uma cidade que eu desconhecia e, principalmente, onde eu era totalmente desconhecida. Eu já trabalhava com encontros e há alguns anos explorava a escala um para um, que muito me interessa. Me deu uma vontade de adentrar esses vários mundos, de me aproximar deles de outra forma e viver junto, por uma noite, esse estado entre dormir e acordar. Aí fiz uma chamada pública, “Chamada para conversas antes de dormir”, que espalhei em lugares públicos e nas redes sociais. Eu não sabia quem eu ia encontrar, quem seriam as pessoas que iam responder à chamada, e isso muito me interessava. Passei duas semanas dormindo cada noite na casa de uma pessoa diferente, com pouquíssimas noites de intervalo. Era cada dia sendo recebida por um universo completamente particular, sozinha, acompanhada apenas do meu gravador. A edição dos áudios e o pensamento instalativo foram um processo posterior, quando comecei a ouvir as conversas gravadas.
É curioso que, ainda que Éter pareça ancorada na escuta, esta é registrada em um lugar de suposta quietude: o quarto onde se dorme, onde se espera que reine o silêncio. E a fruição da obra também se dá pela escuta.
Muito me interessa a possibilidade de conversa nesse momento de tanta quietude e introspecção. O que pode acontecer se essa quietude é compartilhada, quais os lugares em que podemos chegar. O que me move a conversar antes de dormir é que ali existe algo como uma suspensão do tempo e do espaço. Esse lugar, entre o consciente e o inconsciente, de um contato profundo consigo mesmo, que segue uma lógica não tão conhecida, menos racional. O silêncio, assim como o quarto escuro e os colchões para deitar, é essencial na fruição da obra, pois, dessa maneira, o visitante também se coloca nesse estado, criando uma situação de abertura e entrega e, também, de quebra de um ritmo automatizado, para encontrar com essas narrativas. Acredito que seja justamente esse silêncio que proporciona outras possibilidades de escuta.
De que forma o compartilhamento de experiências íntimas numa dimensão pública traz para Éter a discussão sobre os limites entre público e privado?
É curioso pensar sobre o público e o privado em tempos de redes sociais, em que todos se tornam pessoas públicas e com uma superexposição de nossas narrativas privadas. A questão principal, acredito, são quais as narrativas que estão sendo compartilhadas. Acredito que o Éter traz ao público narrativas sobre as fragilidades, as sombras, as angústias, as perguntas, coisas que as pessoas não costumam expor ou agregar às suas “imagens públicas”, e isso só é possível a partir de um acordo de entrega que é criado, o de dividir a cama e o momento de dormir. É uma proposta de presença mútua. Existem diversas maneiras de abordar a questão do público e do privado nesse processo, a começar pela entrada na casa de alguém, pelo gesto de dormir na mesma cama, que talvez seja a última instancia do nosso mundo privado. Não se trata apenas de trazer uma experiência íntima para a esfera pública: trata-se de criar essa experiência, que não aconteceria se não fosse o trabalho. O trabalho age, portanto, tanto no público quanto no privado. E eu me interesso bastante pelos trânsitos entre os dois, por essas experiências que acontecem no campo da vida e, a partir de uma construção prévia, podem se tornar ainda mais vivas.
Entrevista: Danilo Satou, Marcia Dutra e Vinícius Máximo
Foto: Divulgação