Aproximações entre “Léxico familiar” e “O que os cegos estão sonhando?”

À primeira vista, os romances de Natalia Ginzburg e Noemi Jaffe não geram comparações óbvias. No entanto, ao destrinchar os textos, percebo aproximações entre eles, similitudes em relação ao impacto familiar que ambas as autoras sentem, além de alguns eixos que ligam os romances: temas como a memória, o resgate por meio das lembranças e a história contando a História. É importante acentuar, também, a escrita de duas mulheres e o que elas enxergam do mundo à sua volta.

Léxico familiar (1963) retrata a família de Natalia entre as décadas de 1920 e 1950 – retrato entremeado pelo enredo de cada membro familiar, as movimentações da época, os amigos que participavam do clã. O que os cegos estão sonhando? (2012) é a reunião de um ensaio e reflexões de Noemi em cima do diário de sua mãe, Lili, de 1944 e 1945, quando esta passou pelos campos de concentração nazistas de Auschwitz e Bergen-Belsen. Refletindo e construindo seu pensamento em cima da experiência da mãe, Noemi, segunda geração da Shoah, mostra as reverberações desse acontecimento.

Por meio da narração metonímica dos fatos, a narrativa da família de Natalia é a narrativa da Itália da época; a vivência de Lili e Noemi é a vivência da Shoah. Mas não só. Ao mesmo tempo, trata-se da história pessoal das duas autoras – a compreensão pelas pessoas dos fatos palpáveis por quais passaram. Longe de uma escrita que tenta romantizar os eventos, tampouco florear as vicissitudes da vida, os livros são relatos da experiência íntima, concreta e constituinte daquelas personagens. Ou seja, livros individuais, porque falam de pessoas nominadas e pontuadas; mas também coletivos, ao abordar temas universais a partir de vieses específicos.

Linguagem

Além da memória e da família, um dos pontos centrais dos livros é a linguagem, de modo que o comportamento se mostra intimamente ligado a esta, cada um a serviço do outro. As autoras falam sobre o cenário particular delas a partir do léxico com que estão em contato – familiar, porque nuclear; familiar, porque não estranho a elas. Tal léxico serve como reconhecimento e entendimento entre os comuns. Não só a linguagem se faz presente no primeiro plano de ambos os livros, como também participa ativamente da construção da realidade interna e externa das pessoas presentes nas histórias.

Então a filha entendeu e se lembrou que a mãe confunde os usos do presente simples e do presente contínuo. “O que os cegos estão sonhando?”, na verdade, é “com que os cegos sonham?”. Mas, de uma forma inesperada e subitamente bela, aquela frase, em sua suspensão do tempo, em seu deslocamento gramatical e semântico e em seu significado autônomo, como que independente de qualquer lógica narrativa, sintetiza exatamente o estar-no-mundo da mãe. Como se ela estivesse fincada no presente contínuo, num eterno vir-a-ser, maravilhada com as possibilidades do mundo e da natureza. Houve a guerra, houve o exílio, o sofrimento, tudo. Mas esse passado, que houve e que não é negado, mas esquecido, se mistura, em sua memória, a uma disposição perene para o presente, sem o domínio perfeito da gramática, mas como uma apropriação deslocada, em que a percepção das coisas importa mais do que as coisas mesmo. (Trecho de O que os cegos estão sonhando?)

Em Léxico familiar, a preferência pelo uso do pretérito imperfeito mostra como Natalia calculou expor o cotidiano familiar por meio da linguagem, uma vez que tal forma verbal privilegia a repetição em um tempo distante, voltado justamente para hábitos. Não é à toa que, no decorrer do livro, seja possível antecipar a reação do pai de Natalia, Giuseppe, que foi introduzido pela sua fala marcada: as parvoíces, os filhos que não davam corda. Ou a alegria da mãe e a retomada das histórias por ela.

– Que nada! Você é parva, mesmo! Não era uma coisa tão simples assim! Você está sempre pronta a me espezinhar. Olha só que burra você é!

– Eu, quando estava no meu colégio, – disse minha mãe – também tinha que estudar as baleias. A história natural era bem ensinada, eu gostava muito. Porém, no meu colégio, tínhamos que assistir a missas demais, precisávamos confessar sempre. Às vezes não sabíamos que pecado confessar, e então dizíamos: ‘roubei a neve!’

– “Roubei a neve!” Ah, como era bom o meu colégio! Como me diverti lá! Todos os domingos – disse – ia à casa dos Barbison. As irmãs do Barbison eram chamadas de Beatas, porque eram muito carolas. O nome verdadeiro do Barbison era Perego. Seus amigos tinham feito para ele o seguinte poema:

Bom é ver de noite e na matina

Do Perego a casa e a cantina.

– Ah, não vamos começar agora com o Barbison! – disse meu pai. – Já ouvi essa história mais de mil vezes! (Trecho de Léxico familiar)

Memória

A escrita da memória é complexa por uma série de motivos. Não só porque tematiza sobre o que pode ou não ser tangível, mas, também, porque sempre se mostra como um relato relembrado. Esse movimento de rememoração pode ser entendido como criação, tensionando os limites entre ficção e realidade. Isto é, a representação e o verossímil compartilhando moldes fronteiriços. A partir disso, têm-se duas histórias cujos formatos são narrações – no caso de Natalia, de sua família e da Itália; no de Lili, dos campos de concentração da Alemanha nazista.

Diferentemente do ordinário, Natalia logo adverte no início do livro e expõe a sua tarefa árdua de, como escritora, não romantizar aquela história, estabelecendo uma distância entre ela e o livro. Segundo ela, recordar é puro abandono. Mesmo os relatos estando relacionados com a matéria subjetiva, as autoras tentam extrair dessa matéria contada toda a objetividade possível.

As duas escritas encaram o passado como fatos que foram. Essa posição tanto pode conotar um frio relato das experiências vividas – como percebe-se em Léxico familiar –ou a aceitação do destino – como Lili o faz – ou como um pano de fundo do que aconteceu e ponto. Nesse sentido, é interessante perceber como o castigo que Lili recebeu no campo de concentração ou a morte do marido de Natalia pela tortura, mesmo sendo fatos envolvidos pelo drama – porque o são –, não recorrem ao sentimentalismo ou à dramatização. Não há valorização nos textos – todos os acontecimentos são apresentados no mesmo nível.

Retomando a dualidade entre o real e a ficção, a questão: isso importa? Esse jogo que é apresentado aos leitores só aumenta a genialidade das autoras. Ficção e realidade são narrativas válidas e verdadeiras porque são o recorte de algo maior. A dúvida entra na balança. Em uma das passagens memoráveis de Natalia, ela cita que a ironia de seu amigo Cesare Pavese é o que mais lhe faz falta. Ora, quem conhece e leu Pavese sabe que sua literatura é densa e intensa, não abre espaço para uma fala irônica. E é aí que reside a questão: ao colidir o privado e o público, a autora quebra a continuidade esperada, como se dissesse: “isso aqui é novidade, esse relato é mais real do que todos os outros”. O mesmo faz Noemi – não só sua criação é em cima das memórias da mãe, como seu próprio trabalho de escrita é pautado por dois caminhos: em consonância com o “destino” já aceito pela mãe e seus desdobramentos – objetivos ou não – e a consciência da necessidade humana pela ficção, como mostram os capítulos “ficção e realidade” e “histórias inventadas”.

Na verdade, ao fim desta reflexão, penso que as aproximações que podem ser feitas entre os dois livros ainda são muitas. Por ora, um rápido mergulho. O contato com as autoras, personagens e famílias, o testemunho sobre a linguagem, a dúvida acerca da veracidade dos fatos, a microhistória a partir de situações emblemáticas, tudo isso são pinceladas das histórias, mas que mostram sua vastidão e a densidade do que é narrado. Que estas reflexões sirvam de primeiro contato, de releitura, de aproximação. E é isso que conta.

 

Texto: Mariana Nieri
Foto: Imagem da capa do livro “O que os cegos estão sonhando?”

+Ambos os livros comentados neste artigo estão disponíveis para empréstimo nas Bibliotecas do CCSP

*Publicado em 10 de março de 2018

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