AIDS, vídeo-arte e cinema: para que não possamos esquecer

Chega um momento em que precisamos encarar uma realidade, às vezes muito cruel, às vezes muito próxima, às vezes incompreensível, mas certamente uma realidade. Um fato social que nos acomete e que nos faz questionar o que sentimos diante dele. Um espectador, no escuro, diante de uma tela de cinema. É neste contexto que vamos tentar entender nosso posicionamento sobre aquilo que nos transmite desconforto. Nada é à toa na existência e geralmente o que nos promove incômodo é o que mais gera material para redescobrirmos quem somos.

Poderia estar falando sobre diversos assuntos, mas aqui trato de uma temática que durante um período foi muito recorrente no cinema queer (ou LGBTQI, como algumas plataformas de streamings já o categorizam). Hoje em dia ela ainda volta com a mesma roupagem dramática de antigamente, mas também como certa prova do que foi o passado e de como as coisas evoluem ciclicamente.

Dentro dessa gama de filmes de motivação LGBTQI+ existem os filmes que trabalham a temática da AIDS [“Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (Acquired Immunodeficiency Syndrome), é uma doença do sistema imunológico humano resultante da infecção pelo vírus HIV”*]. Recentemente o filme 120 Batimentos por Minuto (2017), do diretor Robin Campillo, premiado com a Palma de Ouro em Cannes em 2017, trouxe novamente a questão ao público. De uma maneira mais ligada à raiva contra a afasia política que acometeu a sociedade, os noticiários e a política nos anos 1980 e 1990 sobre o tema, o filme mostra a militância francesa do grupo ACT UP, que precisava invadir escolas para explicar sobre métodos de prevenção aos adolescentes. Além da – ainda não tão evidente – necessidade de tratar o assunto como parte da comunidade como um todo e não apenas restrita ao grupo gay e a dependentes químicos, como ocorreu (talvez ainda ocorra?) por muito tempo.

Em geral, os filmes que tratam dessa temática partem para uma narrativa intimista que mobiliza o espectador pela dor da perda iminente a todo instante. Contudo, há outros exemplos que merecem destaque. No documentário Tongues Untied (1989), por exemplo, Mark Riggs nos mostra a relação da AIDS dentro da cultura negra gay norte-americana e como a questão era abordada pela própria comunidade. Riggs traz o ponto de como o debate era ausente dentro da sociedade e da necessidade de se falar sobre o assunto. Assim como fez recentemente a série Pose (2018), produzida para o canal FX, que também nos traz a temática em uma das suas narrativas.

Hoje a medicina evoluiu e é bastante raro encontrarmos notícias como a morte de artistas como Keith Haring, Cazuza e Freddy Mercury, recentemente retratada no filme Bohemian Rhapsody (2018), de Bryan Singer. Logo, o cinema, que não se perde nas atualidades sociais, consegue trazer a questão com diferentes narrativas, algumas retomando o fatalismo dos anos 1990, como Conquistar, Amar e Viver Intensamente (2018) do diretor Christophe Honoré. Contudo, o filme de Honoré traz junto a sutileza e a delicadeza de uma história de amor que questiona a sobrevivência e a persistência de amar e de deixar ser amado. É uma luta de superação conjunta entre amantes, ex-amantes, filho e amigos dentro de uma política que ainda fechava os olhos para a situação.

Estabelecer novamente esse diálogo com a sociedade não é à toa. É, de certa maneira, uma necessidade de expor o que foi conviver com a AIDS durante um longo período e como o diálogo entre sociedade civil e governo é fundamental. Ainda mais nos dias de hoje, em que existem uma incompreensão e uma incomunicabilidade que tornam tudo perigoso. Pensar que as ações promovidas pelo ACT UP nas escolas francesas, para que jovens tenham educação sexual (e muito bem retratadas no filme de Campillo), possam ser necessárias é, realmente, assustador.

O fato de o tema nunca ter saído de cena talvez não seja à toa. Talvez seja uma forma de garantir que as conquistas civis não cessem. Para uma sociedade mais humana é preciso de um poder legitimado que reconheça os problemas e que possa lutar junto e não contra as minorias. E mais uma vez o cinema nos serve como material de memória para reforçar que, se chegamos até aqui, foi diante de muita luta.

Texto: Caio Narezzi (doutorando em estudos cinematográficos pela Université Lumière Lyon 2 e pela Université de Montréal, colabora mensalmente com o site do Centro Cultural São Paulo)
Revisão: Paulo Vinicio de Brito
Ilustração da capa: Beatriz Simões

 

*Publicado em: 3 de abril de 2019

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