Quem fez, quem faz: Carmita Muylaert

Quem fez, quem faz é uma seção do site do CCSP que procura colocar luz sobre trabalhos fundamentais para o funcionamento da instituição, mas que, por diversas razões, permanecem “invisíveis” ao público. Funcionária da Central de Informações há três anos, Carmita Muylaert está no CCSP praticamente desde a abertura do espaço. Boa parte de sua vivência aqui foi dedicada aos projetos de oficinas realizadas durante anos pelo Ateliê de Artes Plásticas e, posteriormente, pelo núcleo educativo da instituição. Em fevereiro de 2018, algumas semanas antes de se aposentar, ela nos contou um pouco sobre o trabalho que considera a “menina dos olhos” de sua trajetória no CCSP: o projeto Arte e Saúde Mental, que, ao longo de 20 anos, estimulou a criação e fruição artística continuada de pacientes da Clínica de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo. Leia abaixo a entrevista na íntegra:

 

Em que ano você entrou no CCSP e como você chegou aqui?
Eu entrei no Centro Cultural São Paulo no ano de inauguração, em 1982. Na época, morava bem perto, então, procurei saber como poderia vir trabalhar aqui. Até então, meu único emprego tinha sido dar aulas de inglês por conta da minha formação em letras. Quando eu fui tomar posse no gabinete da Secretaria Municipal de Cultura, o [então secretário e poeta] Mário Chamie me pediu para vir para cá conversar com o Ricardo Ohtake, que, na época, era o diretor geral do CCSP. Quando cheguei, chovia muito e precisei arregaçar as minhas calças para passar pelas rampas das Bibliotecas. Eu fiquei tão impressionada que perguntei para o Ricardo se tinha algum outro lugar para onde ele pudesse me mandar (risos). Acabei no antigo Idart (Departamento de Informação e Documentação Artísticas), na área de comunicação de massa, que englobava publicidade, rádio, televisão, etc. Fui, então, para longe de onde, inicialmente, eu achava que iria trabalhar. Fiquei quatro anos na Casa das Retortas (localizada próxima à estação de metrô Pedro II), lugar que abrigava o Idart. Lá tratei da documentação das pesquisas que iriam, posteriormente, para o Arquivo Multimeios. Depois, vim para o CCSP com um cargo da Divisão de Artes Plásticas para trabalhar no Ateliê de Artes Plásticas, com a Lala Martinez Corrêa. Eu era estagiária, pois, como não tinha formação em artes, precisava fazer cursos na área. Dei aulas no Ateliê para crianças de sete a 14 anos durante muito tempo, depois para jovens de 14 a 19 anos e, posteriormente, para adultos em geral. O material era doado pela Prefeitura, e o pessoal que frequentava era o público interessado em artes plásticas. Havia uma procura imensa. A aula de modelo vivo, que continua até hoje, eu acompanhei por muito tempo.
No início da década de 1990, comecei uma série de oficinas que uniam arte e saúde mental e eram voltadas aos pacientes da Clínica de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo. Elas duraram quase 20 anos, foi um projeto muito bacana. Levei os alunos a exposições maravilhosas, às Bienais daqui de São Paulo, realizamos várias exposições com os trabalhos produzidos por eles no Ateliê.
Também integrei a equipe do Núcleo de Ação Educativa – responsável pela coordenação do Ateliê, das atividades voltadas à terceira idade, das visitas monitoradas, etc. –, que depois se transformou na Divisão de Ação Cultural e Educativa [atual Supervisão de Ação Cultural]. Eu auxiliava em oficinas, como na de canto coral e modelo vivo. Depois disso, eu fui para a Central de Informações, onde estou há três anos.

 

Durante a maior parte da sua trajetória, você esteve, então, mais próxima da área das artes plásticas. Como se deu essa aproximação, tendo em vista a sua formação em letras?
Eu percebi que a minha vida inteira foi lidar com o público. Eu gosto muito de lidar com o público e foi justamente isso o que eu mais fiz aqui. E a arte abre a cabeça de uma forma impressionante. Eu acho que, se eu pude passar alguma coisa para os meus alunos… eu acho que deu. Foram muitos os alunos que passaram por aqui. Teve um dia em que eu estava no metrô e uma moça me disse “oi”; eu não a reconheci, mas ela disse que tinha sido minha aluna aqui. Ministrar esses cursos no Ateliê e no projeto Arte e Saúde Mental foi uma experiência muito boa, tanto que eu quase fiz mestrado em artes plásticas.

 

Em que contexto foi criado o projeto Arte e Saúde Mental?
Em 1990, o diretor do CCSP, José Américo Motta Pessanha (1989-1992), queria juntar arte e saúde de alguma forma. Na época, a Clínica de Psiquiatria do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo estava muito organizada, então, a convite do José Américo, o psiquiatra Eduardo Galvão Barban, com outros psiquiatras e terapeutas ocupacionais, vieram para cá conversar conosco para desenvolvermos algum trabalho que pudesse ser realizado com os pacientes de saúde mental que tomavam medicação, mas moravam em casa. Esses pacientes eram, em sua maioria, parentes de funcionários públicos ou mesmo funcionários públicos afastados. O Eduardo gostava muito do trabalho da Nise da Silveira, então, o projeto foi bastante inspirado na trajetória dela e pautado pelo estímulo à criação e fruição artística dos pacientes, além da preservação e exposição dos trabalhos realizados. Logo no começo do trabalho, nós tivemos um congresso no Rio de Janeiro e fomos visitar o centro psiquiátrico criado pela Nise, hoje Instituto Municipal Nise da Silveira. As propostas das oficinas eram desenvolvidas em parceria com os médicos – eles próprios, aliás, participavam das atividades. Nós passávamos muitos filmes, alguns que os próprios alunos-pacientes queriam ver, e depois trabalhávamos em cima do que tinha sido visto. Os alunos, divididos em grupos, conversavam sobre esses filmes e criavam a partir deles e das conversas.


Quais são os pontos que aproximam e diferem o projeto Arte e Saúde Mental do trabalho realizado por Nise da Silveira?
O trabalho da Nise e as oficinas do projeto se relacionavam por voltarem o olhar para a produção artística de pessoas com algum tipo de distúrbio mental. A diferença é que, no trabalho da Nise, os pacientes pintavam sem nenhuma proposta prévia. Depois, ela estudava essas criações. Já as nossas oficinas vinham com propostas, que partiam, por exemplo, de alguma exposição, história, algum filme.


Em que medida esse projeto marcou sua trajetória profissional? E como você avalia a aceitação e a longevidade dessa iniciativa no CCSP?
Eu acho que esse trabalho foi a minha menina dos olhos (risos). Foi o que eu mais gostei de fazer. Em relação ao CCSP, todas as direções deram força para que acontecessem as oficinas e as exposições que a gente fazia, mas, na época do Carlos Augusto Calil enquanto diretor daqui, tivemos o maior apoio. Ele conhecia muito o trabalho da Nise da Silveira. Na gestão dele, aconteceu a grande exposição com os trabalhos realizados pelos alunos. Contou até com catálogo. Logo depois dela, com o fim do Ateliê, o projeto acabou, pois não tínhamos mais segurança de continuar com as oficinas sem um lugar fixo. Mas, durante todos os anos que ele aconteceu, o CCSP acolheu e atendeu um público que não é aceito em vários lugares. Muitas pessoas talentosas passaram pelas oficinas ao longo dos anos. Um trabalho – que, inclusive, é capa do catálogo da grande exposição –, produzido em dupla e que retrata a arquitetura do Centro Cultural, foi incorporado à Coleção de Arte da Cidade. Uma das artistas, aliás, recebeu convites para exposições fora daqui, mas não gostou disso, então, acabou não voltando mais para as aulas.

De que modo você acha que o projeto impactou a vida de quem participou dele, inclusive a sua?
O resultado das oficinas para os pacientes era incrível, segundo os médicos. Muitas dessas pessoas começaram a andar de metrô, ir a exposições sozinhas; em alguns casos, tiveram até a medicação reduzida. Elas ampliaram muito o modo de ver a vida. Muitos dos meus ex-alunos vêm me visitar até hoje, foi criado um vínculo grande entre nós. É sempre muito forte esse reencontro. A arte abre muito os nossos olhos para a vida e para a importância das coisas. Essas oficinas me fizeram muito bem.


Entrevista: Danilo Satou, Marcia Dutra e Vinícius Máximo
Foto: Sossô Parma

Posts Relacionados