Museus: história e acolhimento nas instituições da memória

Começou o fim de semana. A cidade está mais vazia por conta de um feriado e você decide sair pela cidade pra se entreter. Quais são as suas primeiras vontades?

Várias fontes confirmam o que já nos é senso comum[1]: no Brasil, a visita a museus dificilmente figura entre nossas escolhas de passeio. Até aí, não há surpresa: quando o assunto é visita a museus de arte no país, não é novidade se falar em (falta de) acessibilidade e de acolhimento para os mais variados tipos de público: crianças, idosos, pessoas LGBTQIA+, habitantes das regiões central e periférica, brasileiros e estrangeiros de diferentes classes financeiras, leigos, especialistas, curiosos. Na verdade, o perfil dos frequentadores de museus era até há pouco muito específico, homogêneo, restrito a pessoas de alta escolaridade e de alta classe social[2].

A demanda por inclusão e representatividade é característica do nosso tempo e tem obrigado inclusive os museólogos a rever os princípios desses locais. Essa não é a primeira vez que o conceito de museu tem que ser revisto: reflexo dos padrões e prioridades culturais de cada época, os museus têm adaptado seu próprio conceito a cada etapa da história.

 

Museus: uma pequena passagem na esteira do tempo

 

O nome dessas instituições vem de Museion, palavra grega que dava nome aos templos das musas da memória. Na época, acreditava-se que a memória era um dom sobrenatural ofertado pela deusa Mnemosine e suas filhas, as nove musas, que inspiravam artistas e cientistas a criar e reproduzir conhecimento e obras variadas. De forma análoga, os museus como conhecemos hoje[3] surgem no século XVIII como entidades arquitetônicas de conservação da memória histórica, cultural e de poder. Seu patrimônio também, alinhado com a antiga função social das musas, complementa a limitada experiência mnemônica humana.

A partir do século XIX, a transformação dos países europeus em unidades independentes gera a consolidação de identidades nacionais nos países da Europa. Os museus, entidades que eram então fechadas em si, descem do pedestal mitológico e se aliam aos governos como agentes educadores da população, veiculando exposições privadas que atendiam a uma narrativa eurocêntrica de superioridade.

Nesse cenário, os museus de arte surgem como instrumentos de conservação e divulgação de antigas obras. Herdam o ar sagrado da Idade Média (na qual a produção de arte era financiada e regulada pela Igreja) e a aura intimidadora e hipnotizante das grandes catedrais. Suas exposições carregam a autoridade do conhecimento erudito, convidando o visitante a contemplar com cuidado a dimensão das obras e do ambiente que o cerca.

O tempo passa e a autoridade do erudito permanece. Seguindo a cronologia e chegando aos dias atuais, percebemos que os tradicionais equipamentos difusores de cultura não incorporaram em suas programações as novas manifestações que têm surgido desde então. Temos até hoje a ideia de que a arte pertence a um universo “divino” que não é o nosso, justamente pela manutenção desse culto ao erudito. Por isso mesmo, desde o século XIX as exposições vêm adquirindo mais traços de interatividade e informalidade. Antes mudas e submissas a oferendas, as musas da memória agora se misturam à população, dividindo o conhecimento com menos parcimônia através de meios eletrônicos e interativos, vídeos explicativos, visitas guiadas e etc.

A cultura erudita, tradicionalmente mais valorizada que a popular, é priorizada nas instâncias educacionais e políticas do Brasil atual, reforçando seu estigma de superioridade – não nos esqueçamos da reprodução desmedida de música erudita nos metrôs em São Paulo[4], quando se expuseram todos os usuários do metrô à reprodução de músicas orquestradas, com a justificativa de que o gênero teria o mesmo impacto calmante em todos. São Paulo é uma cidade cuja pluralidade corresponde ao seu tamanho geográfico, e as manifestações culturais que não se alinham com o eixo erudito acabam passando em branco aos olhos das programações.

Além disso, nos nossos dias, há toda uma geografia cultural que não acompanha a habitação urbana. Em São Paulo, os principais museus estão situados em áreas centrais da cidade, com difícil acesso via transporte público ou estacionamento. A geografia interna desses locais, por sua vez, não é mais acolhedora: para uma primeira visita, os ingressos caros e ambientes pouco confortáveis (geralmente muito vigiados, regulados e frágeis) não tornam a experiência mais agradável, reforçando a sensação de que o consumo de arte é uma esfera impenetrável e incompreensível na qual não se é totalmente bem vindo.

Para além do ambiente, as minorias sociais têm imensa dificuldade em se identificar com as exposições em si, por causa de uma contradição entre sujeito e objeto: raramente contemplam-se as minorias enquanto artistas; prevalece a sua representação estereotipada e objetificada, condicionada à visão “erudita” de tempos passados.

Não é de se admirar que os museus de arte não estejam entre os passeios mais desejados pelo brasileiro. Num país cuja maioria da população está em desalinho com o grupo de poder e, portanto, é dificilmente contemplada pelas exposições, não recebe uma educação que viabilize a familiarização de todas as classes com o ambiente museológico e com o conhecimento sobre as artes, sem também que se atualize acolhendo como válidas e dignas as manifestações culturais mais recentes (incorporando artes urbanas recentes como os grafites e os lambes), é claro que a consequência imediata é a opção pelo afastamento dos museus, das musas e da própria memória.

Como consequência, a demanda por representatividade característica do nosso tempo sensibilizou os órgãos culturais: centros culturais têm sido criados em todas as regiões da cidade, e mesmo os equipamentos mais tradicionais têm aumentado significativamente programações que contemplem as minorias. Finalmente, os museus-musas, guardiões da memória, afastam-se cada vez mais da sua instância divina, assumindo feições cotidianas e habitando o espaço junto do visitante. E a consequência é evidente: no primeiro semestre de 2019, museus em todo o Brasil tiveram registro de 50% de alta dos públicos[5].

 

Nossa capacidade de interação com o estético

 

Existe, é claro, um longo caminho de mudanças para que os museus de arte sejam amigáveis a todos os públicos. Uma dessas mudanças, no entanto, é uma virada da nossa própria concepção.

Há uma herança histórica que coloca o consumo de arte como refém do conhecimento aprofundado. Na verdade, a dimensão do conhecimento é só uma das que podemos usar para interagir com a obra de arte. Segundo Csikszentmihaly (1990)[6], a experiência estética (aquela que nos permite interagir com obras) pode ocorrer em quatro dimensões: a dimensão do conhecimento, da experiência emocional, do impacto que a beleza do objeto tem no observador e da dimensão comunicativa (que diz respeito à reverberação que a obra causa no indivíduo de acordo com sua história). Todas elas exigem um grau de envolvimento psicológico e, se combinadas, geram uma rica interação com a arte.

O que acontece é que o nosso sistema educacional prioriza mais o eixo do conhecimento, muitas vezes reforçando a ideia de que a experiência de fruição depende de uma atividade mental labiríntica para a qual não nos sentimos dispostos e nem capazes – quando, na verdade, uma dimensão é tão válida quanto a outra.

E vale lembrar que não é só para as artes plásticas e eruditas que usamos nossa capacidade de interpretação. Quando vemos um meme que usa a obra de arte para gerar humor, por exemplo, ou um filme/documentário que usa a música erudita para dar o tom em uma cena, ativamos todas as quatro dimensões da experiência, além da nossa própria capacidade de interpretação.

Talvez precisemos nos permitir experienciar a arte usando não só a intelectualidade, mas nosso próprio repertório afetivo e de impressões colhidas ao longo do tempo; Para que ao invés de nos assustarmos com o tamanho das sinfonias, a complexidade das técnicas, a realidade das pinturas, possamos nos conectar com elas através das nossas próprias vivências e emoções.

Da mesma forma como as musas só tinham a existência validada pelos cultos da população mediterrânea, em nossos tempos a arte e a cultura só fazem sentido quando contempladas, pensadas e valorizadas por pessoas que atribuem a ela sentidos tão plurais quanto verdadeiros. Que sejamos bem vindos!

 

Notas:

 

[1] Relatórios e reportagens:

Relatório final da pesquisa: O “não público” dos museus: levantamento estatístico sobre o “não ir” a museus no Distrito Federal. 

Brasileiro vê museu como espaço monótono e elitizado, diz pesquisa.

Pesquisa em museu mostra que 10% do público nunca tinha ido a centro cultural.

[2] Classes A e B reúnem 82% dos frequentadores de museus, diz pesquisa. 

[3] A tradição de expor diferentes artefatos existe desde a Antiga Roma, mas a ideia de um prédio destinado à exibição exclusiva de patrimônio cultural surge na Europa como um reaproveitamento das coleções de arte. prática que era muito comum na época.

[4] Metrô coloca música para relaxar, mas enfurece usuários.

[5] Museus em alta: 1º semestre de 2019 tem recordes de público pelo Brasil.

[6] CSIKSZENTMIHAL VI, M. The Art of Seeing; An Interpretation of the Aesthetic Encounter. Malibu: The Getty Museum, 1990

 

Texto: Isabela Pretti Nogueira
Ilustração: Marina Ester

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