Laurie Anderson e a resistência da perda

Documentário e ficção são dois gêneros que fazem parte do cinema há algum tempo e delimitam, em senso comum, histórias reais e histórias não reais. Estes dois termos podem agradar a uns e a outros e há quem prefira ficções e aqueles que gostem dos documentários.

Há também os filmes que conseguem transpor essa barreira e criar algo entre o documentário e a ficção de uma maneira menos precisa. Talvez transpor não seja o verbo correto. Talvez algo como atravessar seja melhor. Lembro-me muito de Moscou (2009), de Eduardo Coutinho, em que as dúvidas sobre a encenação, a realidade e o filme se misturavam com os anseios dos personagens, dos atores e dos humanos. E, claro, do espectador, que tenta compreender, de alguma maneira, toda essa mistura. Esse movimento é algo raro e de uma beleza ímpar quando trabalhado assim. A mistura entre aquilo que é filmado e aquele que filma é algo que coloca o cinema em uma nova perspectiva em relação à arte, assim como Velásquez fez com a obra As meninas (1656), em que ele próprio se coloca na imagem, dentro de um jogo narrativo que faz com que nos perguntemos de imediato: quem está a pintar o quadro? Sob o ponto de vista do espectador, diversos elementos presentes na obra podem trazer hipóteses variadas sobre o que ela conta. Contudo, o cinema permite a digressão dentro da obra do sujeito em construção.

Devido justamente a essa digressão, há também nesse hibridismo de documentário e ficção um pouco de ensaio, sem dúvida. Ao se experimentar como um ato em construção, o filme se estabelece como uma experiência e se mistura com a história de cada um, participante ou não daquele pedaço de tempo condensando em imagem e som.

Grande nome da Nouvelle Vague francesa e diretora de diversos documentários, ficções e filmes-ensaio, Agnès Varda trabalha essa porosidade do cinema de maneira muito particular e leve. Em seu filme mais recente, Visages, Villages (2017), feito em parceria com o fotógrafo francês JR, percorre endereços pela França para retratar o outro, em uma mistura de fotografia – ofício de JR, mas também de Varda – com relatos audiovisuais.

Se recuperarmos um pouco da história fílmica de Varda veremos que a presença do outro é constante. Em Cléo das 5 às 7 (1962), o espectador acompanha a personagem angustiada pela notícia proeminente de sua possível doença grave. Em Os renegados (1985), Varda parte de uma história verdadeira sobre a morte de uma menina sem-teto e reconstrói com entrevistas reais, ou seja, documentárias, uma história contada a partir da ficção.

Essa presença do outro não é apenas estabelecida com o objeto filmado, mas também com sua própria equipe de filmagem e consigo mesma, como fica bastante claro em As praias de Agnès (2008). A questão autobiográfica recai muito pontualmente quando a imagem da própria diretora é colocada em foco, tanto em As praias de Agnès como em Visages, Villages. É claro que em toda sua trajetória cinematográfica essa presença é pulsante. Então como distinguir aquilo que é documentário daquilo que é uma história ficcionalizante?

Temos a sensação de que Varda, ao encontrar o outro, busca a si mesma. Isso não deixa de ser uma verdade. Afinal, nós só existimos a partir do outro. Portanto, essa busca por retratar outras pessoas acaba sendo uma forma de contar sua própria história. E aí o limite entre documentário e ficção fica mais complexo. Se o documentário pressupõe um discurso da verdade, é preciso repensar o que é a verdade em termos autobiográficos. Ou mesmo pensar se há a necessidade da verdade.

Sarah Yakhni [1] usa a definição deleuziana de “descrições óticas e sonoras puras” para justificar que, no caso de Varda, a verdade não é uma perspectiva última. “Transcendendo o ato de contar uma história, o filme se dirige para uma reflexão sobre o mundo”, diz Yakhni, sobre um dos filmes de Varda. E acredito que essa acaba sendo sua grande força cinematográfica.

Essa necessidade de compreender sua história a partir da história de outros acaba sendo uma forma de documentar o mundo e ficcionalizar a vida. Afinal, nós só conseguimos pensar sobre nossa história a partir de uma narrativa. E o quanto dessa narrativa é preenchida por lapsos de memórias inexistentes? É como se vivêssemos em um espaço-tempo em que o passado e o presente se flexionam dentro de um mesmo momento. E aquele passado que está sendo contado só passa a existir a partir do momento presente. Ou seja, ele já não é mais passado, mas sim presente, e permite então a penetração da experiência do agora dentro da memória.

Talvez essa perspectiva cinematográfica de hibridismo documentário-ficção seja apenas uma afirmação contundente do nosso tempo, em que histórias entram com maior frequência no nosso cotidiano. A partir delas é que conseguimos compreender quem somos. Ou quiçá seja apenas um formato mais fácil de contar e pensar nossas próprias histórias, sejam elas coletivas ou individuais.

“Je me souviens pendant que je vie” (a tradução seria algo como: “Eu me lembro enquanto vivo”) é a última frase proferida por Varda em As praias de Agnès, e ela é de uma beleza que explica toda a essência do filme, e também das nossas vidas. A vida é uma memória que construímos a todo momento a partir do real, mas com a ajuda da ficção.

Texto: Caio Narezzi (doutorando em estudos cinematográficos pela Université Lumière Lyon 2 e pela Université de Montréal, colabora mensalmente com o site do Centro Cultural São Paulo)

 

Revisão: Paulo Vinicio de Brito
Ilustração da capa: Beatriz Vecchia

 

Notas:

 

[1] YAKHNI, Sarah. Ensaios de Varda: Narrativas do desejo in: TEIXEIRA, Francisco Elinaldo (org.). O ensaio no cinema: Formação de um quarto domínio das imagens na cultura audiovisual contemporânea, São Paulo: Hucitec Editora, 2015.

*Publicado em 27 de setembro de 2018

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