Fernanda | Escrevivendo na Pandemia

Cotidiano e tempo pandêmicos por Fernanda Miranda

ILUSTRAÇÃO ROBINHO SANTANA 

A sensação de que tudo desaba é inconfundível, vem de muitos arranjos, fatos, de lamentos que surgem de pessoas conhecidas, anônimas, íntimas, do jornal, do horóscopo, da intuição. Nada é indiferente. Cadê aquela velha coragem de ser…. fragilidade? Mirrou, num cansaço que não é pessoal. Não é só o cotidiano da quarentena o problema, é tudo isso que se passa, é tudo isso que está represado, o que os olhos desacreditam que um país (e não só o Estado) pode fazer tão abertamente: retroceder, romper caminhos, corroborar, gerir a morte, contar os corpos.

Projetos intelectuais buscam uma esquina no imprevisível… daqui imagino a gargalhada de Brás Cubas, vencedor.

A era Covid-19 expande uma reflexão, entre tantas outras coisas, sobre o tempo. O tempo, o maior dos nossos interlocutores. A gargalhada final. O cheiro, inda agora, do
açúcar que já queimou. A encruzilhada que nos forma e interroga. Horas na tela, essa
materialidade chapada sem metáfora nenhuma.

O tempo virou. A percepção das antigas 24 horas ficou assombrada, a da velhice também. E se você acaso é mãe como eu, então sabe que a experiência do tempo tornou- se uma materialidade concreta da vida em 3D – três dimensões no corpo do cotidiano. O tempo que falta. O tempo que espanta. O tempo que exige outra pele.

O tempo é de criar maneiras e reinventar atos de vida, jeitos de ficar viva.

Eu tenho me fortalecido, sobretudo, da coletividade que sobrevive à distância.

Uma doação de mulheres quilombolas da baixada santista ao Bloco do beco (coração insubmisso que bate e firma aqui no lado sul do mapa onde vivo) trouxe até mim mel, peixe, mexerica do pé, aquele limãozinho sabe? Que você abre e o cheiro colore a casa toda…. palmito sem agrotóxico nem rótulo, mandioca com terra… o nome da cooperativa escrito em letra de mão em papeizinhos xerocados, o amor tem muitos jeitos e sabe chegar. A periferia antecede a resistência, a reinventa, se aparelha. É mais que o peixe, o mel e o limão. É saber que abelha fazendo mel, vale o tempo que não voou: inúmeras mulheres na linha de frente da própria vida e da vida coletiva seguem mantendo o mundo girando, organizando e fortalecendo redes, acolhendo quando aperta, armando saídas, pintando estrelas brilhantes no teto.

O presente nos está a mostrar que sim, nós guardamos do passado acúmulos de experiência e biotecnologias (aqui incluso a capacidade de narrar e fazer poemas) e sabemos como trazer esse saber para o nosso jeito de corpo e maneiras, fabricar o pão, aquilombar. O corpo e a mente vivem o agora.

Me apetece muito pensar o Tempo, esse senhor tão bonito, do qual todos somos filhos. Tudo é tempo, nossas células imperceptíveis peles que trocamos de quando em quando, meu menino mudando dentes, minha pretensão de ser intelectual – e não apenas acadêmica, pois isso não me torna nem abelha nem sujeito político de transformação social, que é afinal o que almejo da vida, empenhar minha fibra no movimento dos ventos para além das fronteiras e dos blocos de encaixar: uma intelectualidade à vera, risca a faca, inventa uma arquitetura aberta com software livre, dança na cara dos caretas, não se vende em potes cor de medalha.

Analistas políticos apontam que estamos vivendo uma transição de mundos, e que D.C. [depois do Corona] tudo mudará: as economias, os equilíbrios tênues, a ideia de saúde coletiva, as condições de sustentabilidade, o bem comum, o trabalho, o cotidiano, os afetos. Um futuro distópico após uma pandemia não parece um roteiro de série que a gente já viu?

O Afrofuturismo é uma síntese que articula temporalidades encruzilhadas.

Acontece que eu preciso de mel imediatamente (e recebo), e tenho ofertado meus peixes agora (projetos, trocas, aulas, leituras comentadas, poemas e tudo que está ao alcance do possível). O futuro tornou-se uma maré assombrada do Tempo, mas o presente é de carne e a gente sente seu peso e sua audácia.

Para o momento, sejamos afropresentistas.

O presente é nossa casa, nossa criatividade e aquilo ao qual não podemos mais retornar: o silêncio. O presente é exigente, tira a máscara e a mordaça e nos força a renovar os compêndios do ódio e das linhas de fuga. O presente é mulher, é negra e sabe guerrear, sabe despistar, sabe dar passos de formiga se for preciso, e reconhece as trilhas.

Mas a vida só é presente se for aguerrida. O resto é mofo, e álcool em gel não limpa.

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