Bacurau: metonímia de um país em frangalhos

É preciso repensar o Brasil. E talvez de uma maneira bastante urgente. O país que antes era conhecido como da alegria hoje em dia é o país do ódio e da raiva. Não é à toa. Talvez dizer que o Brasil sempre foi o país da alegria também seja uma via de escape, uma maneira de fechar os olhos para a realidade e aos poucos apagar memórias de insurreições, de escravidão, de desigualdade social extrema, de morte por fome, de violência policial, de agressões às minorias. O Brasil não é o país do carnaval, o Brasil é o país de Bacurau.

Bacurau (2019, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles) entrou em cartaz nas salas de cinema e teve uma repercussão que há tempos não se via para um filme nacional. O fato é mesmo interessante. Ao assistir Bacurau identificamos um microcosmos brasileiro: uma população em meio ao sertão pernambucano, numa cidade de poucos habitantes, que subsiste em meio a um sistema econômico capitalista. Sistema esse que enfraquece aquela população tirando-os de uma condição indígena[1] para torná-los pobres, onde tudo se torna mercadoria.

Não é difícil entender que Bacurau existe. Bacurau são as populações ribeirinhas que sofrem até hoje com a construção de um projeto megalomaníaco da hidrelétrica de Belo Monte; um projeto que não conseguiu ser aprovado nem durante a ditadura militar, mas que conseguiu aval em meio ao governo do PT[2]. Bacurau é Canudos. Lunga é Zumbi dos Palmares e é também Lampião. Bacurau é um microcosmos da nossa história. E não é à toa que um dos locais mais importantes para a narrativa seja o Museu. E que os dois “turistas” brasileiros que visitam Bacurau não queiram entrar nele. Ninguém quer conhecer a história do próprio país. A história é longa, os caminhos são complexos e é muito mais fácil pensar no que vamos consumir amanhã. Já dizia Paulo Emílio Sales Gomes: “O Brasil se interessa pouco pelo próprio passado”[3]. E é verdade.

Bacurau não fala sobre o amanhã, Bacurau fala sobre o ontem para pensar o amanhã. É sobre movimentos populares contra uma colonização feita por nós mesmos em nós mesmos. Estamos colonizando os brasileiros dentro do nosso próprio país. A história do Brasil é feita de sangue de indígenas, de escravos, de quilombolas, de travestis, de Chico Mendes, de Marielle Franco, de Ágatha Félix, de Paulo Paulino Guajajara. Os habitantes de Bacurau representam essa fração da nossa sociedade. A diferença é que no filme eles conseguiram vencer. No Brasil de hoje, estamos longe disso.

Por isso digo que é preciso repensar o Brasil. A história é contada por aqueles que estão no poder, enquanto personagens importantes da história atual foram apagados de livros escolares e do imaginário popular. Basta pensarmos em Carlos Marighella. O filme Marighella (2019, Wagner Moura) retrata o perfil de um revolucionário que acreditava que para combater a violência da ditadura militar era preciso uma revolução armada em plenas ruas de São Paulo. A história deixou Marighella de lado. E não é à toa que o filme tem encontrado dificuldades em ser distribuído no Brasil de Bolsonaro. Diferentemente de Bacurau, que se passa em uma cidade fictícia, Marighella se passa em São Paulo e a luta é contra uma polícia repressora que detém o poder dentro de uma sociedade que acredita em valores morais extremamente ultrapassados. Parece familiar? Pois é. Mas a imagem de Marighella perturba qualquer governo, de esquerda ou de direita. Marighella, assim como os habitantes de Bacurau, sabia que para vencer um aparato policial violento financiado por norte-americanos, era preciso dar o sangue. Literalmente. Marighella foi assassinado em 4 novembro de 1969, 50 anos atrás, em plena Alameda Casa Branca, localizada em um bairro nobre de São Paulo. Marighella e Bacurau são sinônimos de resistência.

Contudo, quando lemos os relatos das populações ribeirinhas do médio rio Xingu também encontramos Bacurau. Uma vez que elas foram retiradas do seu modo de vida rural para entrar em um modo de vida urbana, em que não encontram condições de acompanhar o sistema imposto pela cidade e se encontram desprovidas de tudo. Como afirma a cientista social Sônia Barbosa Magalhães[4]: “o que foi destruído foi exatamente o modo tradicional como viviam os ribeirinhos do médio rio Xingu (…). Destruído violentamente, tanto porque o desastre ambiental provocado pela construção da barragem já é em si violento, quanto pelo modo como se deu o processo de expulsão”. Bacurau existe, mas perdeu a batalha. E infelizmente não é com medidas paternalistas que seus habitantes vão sobreviver. Quem nasce em Bacurau é gente e quer continuar a morar onde sempre morou, nas condições em que sempre viveu, com o acesso ao rio que sempre existiu. Bacurau não está no mapa do Brasil porque é o país inteiro.

Por isso é preciso repensar o Brasil. O fato de atualmente estarmos sendo governados por uma extrema direita imbecilizada não é à toa. A gente precisa conquistar nossos museus antes que eles peguem fogo. É preciso poder conhecer a nossa história e entender que o Brasil é formado por populações pobres, indígenas, negras, mas sobretudo, por populações onde a coletividade é forte. É preciso conhecer vozes como a de Indianara Siqueira, representada no importante documentário Indianara (2019, Aude Chevalier-Beaumel, Marcelo Barbosa). É preciso vencer o medo que transforma cidadãos em pedras como fez Tito, personagem do filme Tito e os pássaros (2018, Gabriel Bitar, André Catoto, Gustavo Steinberg). É preciso repensar o modelo econômico que acredita que os recursos naturais estão aqui para serem usados sem nenhuma consequência. É preciso entender que o crescimento econômico tem seu preço. Belo Monte é o símbolo do crescimento econômico a qualquer custo e o que tudo isso representa. A Amazônia está em chamas por razões econômicas há anos, isso não é novidade. Assim como os indígenas estão sendo massacrados há 500 anos. Não está na hora de enxergar que Bacurau existe, que sempre perdeu e sempre perderá se continuarmos assim?

O país da alegria, como dizem os gringos, nunca foi da alegria. Pode ser da alegria para uma pequena parcela da população que não precisa enfrentar trânsito, guerra civil, morte por bala, violência de gênero, assédio diariamente, entre outras milhares de mazelas. E também é preciso lembrar que a solução não é a violência. Como já se sabe, em guerra nunca há um vencedor, há sempre perdedores. O Brasil precisa entender que Bacurau é sua metonímia. Mas mais importante é entender que o brasileiro tem a força coletiva de Bacurau. Todo brasileiro é gente, assim como a fauna e a flora. Tudo é gente. E como dizia Chico Science: “O homem coletivo sente a necessidade de lutar / O orgulho, a arrogância, a glória / Enche a imaginação de domínio / São demônios os que destroem o poder / Bravio da humanidade (…) Banditismo por necessidade / Banditismo por uma questão de classe”[5]. Nada é à toa. Viva Bacurau!

 

Notas:

 

[1] Uso o termo indígena em referência ao conceito que o antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro deu em uma entrevista para Eliane Brum em que ele explica: “(…) Índio, para mim, é índios. É justamente o contrário do pobre. Eles se definem pelo que têm de diferente, uns dos outros e eles todos de nós, e por alguém cuja razão de ser é continuar sendo o que é. Mesmo que adotando coisas da gente, mesmo que querendo também a sua motocicleta, o seu rádio, o seu Ipad, seja o que for, ele quer isso sem que lhe tirem o que ele já tem e sempre teve. E alguns não querem isso, não estão interessados. Não é todo mundo que quer ser igual ao branco. O que aconteceu com a história do Brasil é que foi um processo circular de transformação de índio em pobre. Tira a terra, tira a língua, tira a religião. Aí o cara fica com o quê? Com a força de trabalho. Virou pobre. Qual foi sempre o truque da mestiçagem brasileira? Tiravam tudo, convertiam e diziam: agora, se vocês se comportarem bem, daqui a 200, 300, 400 anos, vocês vão virar brancos. Eles deixam de ser índios, mas não conseguem chegar a ser brancos. Pessoal, vocês precisam misturar para virar branco. Se vocês se esforçarem, melhorarem a raça, melhorarem o sangue, vai virar branco. O que chamam de mestiçagem é uma fraude. O nome é branqueamento.”. Viveiros de Castro, E. – “Diálogos sobre o fim do mundo” 

[2] Para entender melhor o assunto recomendo a leitura da coluna de Eliane Brum “Lula livre, sim, mas sem fraudar a história”

[3] Sales Gomes, Paulo E. Cinema: Trajetória no subdesenvolvimento. Editora Paz e Terra, São Paulo, 1996.

[4] Barbosa Magalhães, Sônia. “A voz dos ribeirinhos expulsos”, in A expulsão de ribeirinhos em Belo Monte, São Paulo, 2017; 

[5] Versos retirados da letra de Monólogo ao pé do ouvido, Chico Science.

 

Texto: Caio Narezzi (doutorando em estudos cinematográficos pela Université Lumière Lyon 2 e pela Université de Montréal, colabora mensalmente com o site do Centro Cultural São Paulo)
Revisão: Paulo Vinício de Brito
Ilustração: Marina Ester

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