100 anos de Jacob do Bandolim

Embora o choro não seja visto como o gênero de maior prestígio e visibilidade na música brasileira, ele foi uma espécie de catalisador de ritmos e estéticas musicais nacionais entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX, tornando-se a primeira manifestação musical urbana instrumental no Brasil e influenciando toda a música popular que se iniciaria a partir de então.

Em 2018, um dos principais expoentes do gênero, Jacob do Bandolim (1918-1969), completaria 100 anos e foi homenageado no CCSP pela musicista Rosária Gatti, que apresentou, ao piano, releituras das obras do chorão compositor. Ainda que desconhecida de boa parte do público atual, a trajetória de Jacob se mostra interessante ao sintetizar o cotidiano do Rio de Janeiro de boa parte do século XX, em um contexto com intensas transformações urbanas e populacionais, e reunir o círculo de pessoas ligadas ao choro durante seu auge.

O gênero musical em questão nasce no Período Imperial, a partir da assimilação de ritmos estrangeiros e suas danças típicas como a mazurca, a habanera e a polca (polonesa, cubana e checa, respectivamente) e da fusão entre elas para compor uma identidade nacional.

Neste contexto, ao mesmo tempo em que a população começa a absorver as modinhas, originalmente cantadas nos palácios, ocorre a expansão do lundu – tipo de música introduzida por grupos angolanos quando escravizados no Brasil –, que possui traços do batuque africano e de danças relacionadas a rituais das religiões de matriz africana.

Entre a nobre tradição da modinha e o caráter popular do lundu, surge o maxixe, tipo de dança de salão (ambiente com presença majoritariamente de negros no subúrbio carioca) que dará origem a sambas como “Pelo Telefone” – sendo esta a primeira gravada e registrada na Biblioteca Nacional em 1916. Enquanto o choro é tocado mais à frente na casa, comumente em um formato de roda, o samba encontra-se no terreiro, perto de onde é feita a macumba, havendo, por isso, certa elitização do choro em detrimento do samba.

Outros dois nomes se mostram essenciais nesse primeiro momento de difusão do choro: Joaquim Callado (1848-1880), posteriormente conhecido como “o pai do choro”, responsável por criar a formação inicial de grupo do choro, com dois violões, um cavaquinho e uma flauta solista e seu professor, Henrique Alves de Mesquita (1830-1906), compositor e maestro reconhecido por criar expressão “tango brasileiro” para designar a incorporação da habanera na música escutada e produzida no Brasil.

Mais adiante, no início do século XX, Chiquinha Gonzaga (1847-1935), Villa-Lobos (1887-1959) e Pixinguinha (1897-1973) já compunham choros, mesmo chamando alguns de seus trabalhos neste gênero de maxixes e tangos. O uso do termo e a própria prática amadureceram nos anos 30, com o investimento em meios de comunicação de massa pelo governo Vargas e a ascensão do rádio. Como se tratava de músicas instrumentais, o regime de censura adotado no Estado Novo não operava com tanta intensidade contra a veiculação dos choros, que contavam, por exemplo, com gravações do clarinetista e saxofonista sergipano Luiz Americano (1900-1960) e o flautista e maestro carioca Benedito Lacerda (1903-1958).

Luiz, inclusive, foi o responsável pelo primeiro choro com o qual entrou em contato Jacob Pick Bittencourt, até então não conhecido como “do Bandolim”. A escuta de “É do que há” impactou tanto Jacob que, pouco tempo depois, fez a sua primeira apresentação, na Rádio Guanabara, com apenas 15 anos.

Com uma infância tranquila no Rio de Janeiro e formação em contabilidade, Jacob teve diversos empregos, de dono de farmácias a escrevente juramentado da justiça do Rio. Após as primeiras apresentações, Jacob gravou com grandes artistas da época, como Noel Rosa (1910-1937) e Elizeth Cardoso (1920-1990) – descoberta pelo próprio Jacob –, aprofundando também seus estudos e pesquisas nas composições de Pixinguinha e Ernesto Nazareth (1863-1934).

O trabalho de Jacob foi essencial na inserção de referências para a formação do choro, que viria a ser a primeira música urbana instrumental no Brasil. Sua personalidade perfeccionista e rígida tornava restritas as possibilidades de desenvolvimento do gênero, o que por um lado era negativo, por evitar a mistura com outros ritmos – principalmente o blues e o jazz, em alta na mesma época – mas por outro era positivo, já que propiciava um mergulho aprofundado na cultura brasileira urbana, pouco pesquisada naquele momento.

Uma das preocupações centrais de Jacob em sua carreira era a busca pela preservação da memória e a continuidade do estudo e da pesquisa acerca do ritmo que tocava. Se improvisações eram bem-vindas, por exemplo, precisavam ser pensadas apenas dentro das levadas do choro. A melodia, em compasso simples – em que cada unidade de tempo corresponde à duração dada por seu denominador (exemplo: 2/4) –, deveria se caracterizar pela impressão de uma emoção e/ou modulação inesperada. Já o ritmo deve ser solto e sincopado, isto é, deslocado do “tempo forte” para o “tempo fraco”, e assim por diante.

Com todas essas (e muitas outras) considerações, Jacob entrou em atrito com chorões que, para ele, desvirtuavam o gênero e misturavam estas técnicas a outros estilos musicais como o baião e o frevo. Embora Jacob tivesse apreço por estes gêneros, a incorporação deles no choro era algo inconcebível – o que levou-o a prever a decadência desse ritmo a curto prazo.

Jacob sempre teve um posicionamento pessimista diante do que seria o futuro do choro. Nos anos 50 e 60, após a explosão de João Gilberto, Tom Jobim e outros músicos cariocas, a hegemonia da Bossa Nova conquistava não só o Brasil como o mundo todo pela exportação de obras de artistas como Dorival Caymmi (1914-2008), Luís Bonfá (1922-2001) e Laurindo de Almeida (1917-1995).

O choro acabou ficando cada vez mais apagado em virtude deste cenário, sendo visto como algo antiquado frente às novidades. Entretanto, o costume do encontro entre amigos em uma roda de choro continuava sendo disseminado popularmente. No senso comum da época, o gênero associava-se à boemia e a um momento de confraternização, pertencente à ordem do coletivo, ainda que distante da convergência com a dança – que conversava mais diretamente com o samba. Atribuía-se ao choro um caráter mais técnico e menos emotivo, sendo necessária uma formação musical mais aperfeiçoada, com diferentes nuances estilísticas e a capacidade de improvisação, também comum a estilos como o jazz.

Porém, esses termos não devem ser levados ao pé da letra. A relação entre chorões e sambistas é próxima e muito frutífera até os dias de hoje, tanto em grupos regionais como nas parcerias entre chorões e escolas de samba maiores, no Rio de Janeiro ou em São Paulo. A concepção de cada músico varia, assim como o ambiente em que determinadas culturas se desenvolvem. A oposição não deve ser feita levando em conta uma “erudição” do choro ao contrário de uma “vulgaridade” do samba, já que essa associação se dá já no âmbito da música popular. Uma relação similar pode ser vista entre a MPB e o funk atualmente, em que o primeiro emergiu em um passado mais distante e já está consolidado na cultura popular, mas não funciona como o principal ritmo da indústria fonográfica nos dias de hoje por, entre outras razões, não obter um amplo canal de comunicação com as massas – o que ocorre com o funk e, em sua devida proporção, com o samba, na metade do século XX.

No geral, é possível constatar um desconhecimento do choro pela maior parte da população brasileira. Para o professor e sociólogo José de Almeida Amaral Júnior, autor dos livros Chorando na garoa (2013) e Conjunto Atlântico (2017), uma das principais razões que levam ao desconhecimento do gênero e seus artistas é “a escassa difusão de instrumentistas nos meios de comunicação no Brasil, diferentemente do que acontece com cantores e a música direcionada para uma vertente mais comercial e necessariamente cantada. Nesse cenário, a principal forma de divulgação de chorões e seus grupos passa a ser a internet, com suas redes sociais e outras mídias alternativas”.

Em seus livros, Amaral sintetiza as biografias dos principais músicos que se relacionaram ao choro em algum momento da carreira e colaboraram para que o gênero fosse tão bem sucedido e prestigiado principalmente nos séculos XIX e XX, destacando principalmente os músicos paulistas, chorões e seresteiros, que deram grande colaboração para o desenvolvimento do gênero no país. As biografias incluem ainda Anacleto de Medeiros (1866-1907), Romeu Silva (1893-1958) e os já citados Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Joaquim Callado, entre outros, responsáveis pelo início da música brasileira e pilares que serviram como principais influências para Jacob e muitos de seus colegas chorões.

Jacob deixa seu legado por meio de gravações de grandes clássicos do gênero, por suas detalhadas pesquisas e pela fundação do grupo Época de Ouro, em 1964, que permanece em atividade. Colegas de Jacob como o paulistano Antonio D’Áuria (1912-1999) e Altamiro Carrilho (1924-2012) também expandiram o universo do choro para além do Rio de Janeiro, com D’Áuria criando o Conjunto Atlântico, grupo que se reunia no bairro do Bom Retiro em São Paulo e posteriormente participou de uma série de apresentações na televisão, e Carrilho como um dos principais responsáveis pela difusão do choro na Europa.

Outras manifestações do choro foram reconhecidas no interior do Brasil, demonstrando como este ritmo foi importante na construção de uma identidade nacional e como a obra de Jacob refletiu nas mais diversas manifestações musicais do país no século XX, ao promover uma união das técnicas eruditas e populares e elevar o patamar da música instrumental brasileira.

 

+Para saber mais:

 

Coletânea de gravações de Jacob do Bandolim
Apresentação do Época de Ouro na TV Brasil em 2017
Site Instituto Jacob do Bandolim

 

AMARAL JR., José de Almeida. Chorando na garoa – memórias musicais de São Paulo. São Paulo: Fundação Theatro Municipal de São Paulo, 2013.

______________. Conjunto Atlântico – uma história de amor ao choro. São Paulo: Selo Paulistinha, 2017.

 

Texto: João Vitor Guimarães
Colaboração: José de Almeida Amaral Jr.
Ilustração: Beatriz Simões

 

Publicado em: 21 de novembro de 2018.

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